segunda-feira, 9 de julho de 2007

A CRISE NO ORIENTE MÉDIO ENTRE O HAMAS E O FATAH


Entrevista publicada em CENÁRIO INTERNACIONAL em 28/06/2007 - ISSN 1981-9102. Disponível no site: http://www.cenariointernacional.com.br/ri/default2.asp?s=entrevistas2.asp&id=504

Os grupos palestinos Fatah e Hamas deixaram de lado o conflito que já perdura por 59 anos com o Estado de Israel e mergulhou numa luta que já matou mais de 100 pessoas. A economia regional, estrangulada por décadas de conflito, perde ainda mais força. Para discutir esses e outros assuntos, o Cenário Internacional entrevistou o Prof. Renatho Costa, que é especialista em questões do Oriente Médio.

Cenário Internacional: Você acha que a crise que se desenrola nos territórios palestinos entre o Fatah e o Hamas pode ser considerada uma Guerra Civil?

Prof. Renatho Costa: Entendo que podemos considerar, sim, uma guerra civil. É possível chegarmos a essa conclusão com base no fato de que temos uma mesma população lutando pelo direito de ditar os desígnios de seu povo. Porque, na verdade, é essa a motivação desses dois grupos que, até determinado momento, conseguiam conviver “pacificamente”, no entanto, quanto mais suas propostas se distanciaram – o Hamas é islamista e o Fatah é secularista – e o Ocidente fez a opção pelo Fatah, o embate passou a ser uma questão de tempo. Como toda guerra civil, o fratricídio é inevitável e, por mais que entendamos que se trata de um embate dentro de um mesmo grupo religioso – muçulmano sunita –, somente a opção do Fatah por negociar com Israel e, conseqüentemente, com o Ocidente, já o transforma num “traidor do Islã”, por isso, suscetível à morte – conforme a visão islamista.

Cenário Internacional: Quais as conseqüências política, econômica e social dessa crise para as populações locais?

Prof. Renatho Costa: De certa forma, o rompimento do Fatah com o governo de coalizão que havia formado com o Hamas vai fazer com que o Ocidente volte a destinar verbas para os palestinos, assim, pelo menos a população da Cisjordânia pode acabar sendo beneficiada e tendo sua qualidade de vida melhorada. No entanto, esse apoio financeiro poderá gerar a sensação de que o Fatah, definitivamente, se alinhou ao Ocidente e Israel. O risco para isso é de que a retaliação do Hamas seja ainda mais dura contra os partidários do Fatah. Politicamente, a manutenção do Fatah na direção da Autoridade Palestina não significa que teremos condições para retomar negociações de paz entre palestinos e Israel. Hoje, a AP não representa os palestinos e isso inviabiliza qualquer acordo. Se não havia consenso acerca da viabilidade da criação de dois estados na Palestina, hoje, com o Hamas controlando a Faixa de Gaza, dificilmente teremos condições para criar três Estados! O resultado imediato dessa divergência político-religiosa entre Hamas e Fatah repercute diretamente na população palestina. Israel, na iminência de sofrer algum tipo de represália por parte do Hamas, pode acabar invadindo a Faixa de Gaza e intensificando a segurança na Cisjordânia para diminuir os riscos de atentados terroristas em Israel. Esses procedimentos de segurança, definitivamente, vão dificultar ainda mais as condições de vida dos palestinos.

Cenário Internacional: Comerciantes e fazendeiros da Faixa de Gaza dizem que a situação econômica na região era muito melhor sob ocupação israelense. O que você acha disso?

Prof. Renatho Costa: De fato, se considerarmos somente o aspecto econômico, provavelmente chegaremos à conclusão de que a situação local era muito melhor sob a ocupação israelense, no entanto, esse decréscimo da qualidade se deu, em grande parte, devido às dificuldades impostas pelos israelenses assim que deixaram a região. A Faixa de Gaza é uma região pobre em recursos naturais e super povoada. Sempre sofreu restrições quanto ao seu desenvolvimento econômico enquanto esteve sob domínio israelense, assim, não seria possível imaginar que a “independência” de Gaza geraria, sem incentivo externo, algum tipo de desenvolvimento econômico da região. Ainda hoje os palestinos de Gaza dependem de Israel para conseguir emprego. Contudo, com o Hamas assumindo o governo local, cada vez mais os comerciantes e fazendeiros sofrerão restrições por parte dos israelenses –por considerarem de alto risco o acesso de palestinos ao seu território –e, dos próprios membros do Hamas, que poderão considerá-los colaboracionistas, caso mantenham qualquer tipo de relação com Israel, um Estado não reconhecido pela organização.

Cenário Internacional: O que você acha do muro que Israel está construindo na fronteira com Cisjordânia. Esse pode ser um dos motivos do conflito atual?

Prof. Renatho Costa: É fato que os judeus sofreram com a violência nazista ao terem seu direito de ir-e-vir restrito e, mais ainda, serem confinados em guetos cercados por muros. É fato que essa restrição de liberdade se dava por motivos de segurança, ou seja, era muito mais fácil para os nazistas controlarem os judeus no interior dos muros dos campos de concentração e guetos, que soltos pelas cidades, onde poderiam organizar-se contra seus algozes. O que causa estranheza à grande parte dos analistas de RI é que o Estado de Israel – formado por judeus que sofreram a violência nazista – utiliza-se de mecanismos semelhantes para “se defenderem”. A construção do muro na fronteira com a Cisjordânia vem sendo criticada há muito, principalmente pelos intelectuais, como Edward Said, falecido em setembro de 2003. A justificativa para a construção do muro somente se sustenta na lógica da segurança nacional, no entanto, quanto mais Israel se fecha – ou os palestinos, dependendo do ponto de vista –, mais gera ódio da população palestina. A restrição de liberdade, aliada às condições precárias de vida nos campos de refugiados, se, num primeiro momento, não representaram a motivação imediata para o rompimento entre Hamas e Fatah, obviamente, afastam a possibilidade de quaisquer dos grupos virem a negociar com Israel num momento posterior. E, sem a atribuição de legitimidade dada pela população, qualquer acordo que as lideranças alcançarem poderá não ter repercussão.

Cenário Internacional: Com a crise na Palestina das últimas semanas, a região ficou ainda mais dividida entre os simpatizantes do Hamas e do Fatah que disputam o controle regional. Assim, é possível traçar um desfecho para essa crise?

Prof. Renatho Costa: É muito difícil fazer qualquer previsão para essa crise, no entanto, alguns cenários parecem ser mais viáveis que outros. O primeiro questionamento que se faria é: até que ponto os israelenses agüentarão os ataques do Hamas ao seu território sem que programem a invasão da Faixa de Gaza? E, se invadirem, qual seria a vantagem? Voltar a controlar Gaza não parece ser interessante para Israel, haja vista poder gerar efeitos colaterais devastadores como a intensificação de atentados terroristas em território israelense. Assim, é melhor não cometer o mesmo erro que tiveram ao invadir o Líbano em 2006. Por outro lado, uma “guerra controlada” – que não atinja significativamente o território e a população de Israel – entre palestinos, talvez seja interessante aos israelenses, haja vista minar as forças dos dois lados e enfraquecer temporariamente a discussão acerca da criação do Estado Palestino. Poderíamos, também, aventar a possibilidade de intervenção externa nessa “guerra civil”, porém, o ator mais capacitado para agir nessas circunstâncias seria os Estados Unidos, no entanto, já estão demasiadamente “atolados” nos problemas iraquianos e afegãos para abrirem outra frente de batalha contra os sunitas palestinos. Assim, o mais provável é que o Fatah consiga apoio extra-oficial dos Estados Unidos e demais atores ocidentais – como a retomada da ajuda financeira – para lutar contra o islamismo do Hamas. No entanto, mesmo assim a vitória não estaria assegurada a nenhum dos lados. Concluindo, não havendo clima propício para uma renegociação política entre Hamas e Fatah, é provável que a guerra civil perdure por mais algum tempo e gere muito dano para a população palestina, de modo geral. Talvez, a única possibilidade de paz esteja fora da área do conflito, ou seja, se atores externos –lideranças políticas e/ou religiosas –, que exerçam influência sobre os líderes do Hamas e Fatah, chegarem a um acordo que seja interessante para si e, assim, sentirão estimulados a influírem nos grupos em litígio.

NEO-REALISMO E CULTURALISMO: ABORDAGENS COMPLEMENTARES?

BRZEZINSKI, JERVIS, KAPLAN, KENNEDY, KISSINGER, KUPCHAN E MEARSHEIMER VERSUS LEWIS. O ISLÃ EM PERSPECTIVA



Artigo publicado em "O Debatedouro", Edição 77, Abril/2007
ISSN 1678 6637 - ANO V - www.odebatedouro.com.br

por Marcos Toyansk*, Petronio De Tilio Neto** e Renatho Costa***

PANORAMA HISTÓRICO

No início do século XX, ainda sob o impacto da Primeira Grande Guerra e da visão idealista do Presidente Woodrow Wilson – da qual se pode destacar o princípio de que o caminho para a paz eterna transcorreria pela cooperação entre as nações – alguns estudiosos passaram a buscar novas saídas para compreender as Relações Internacionais.
Os primeiros a apontarem outros caminhos para a compreensão do sistema internacional foram Edward H. Carr e Hans Morgenthau, respectivamente em suas obras Twenty Years of Crisis – 1919-1939 (1939) e Politics Among Nations (1948). Com a virulência com que ocorreu a Segunda Grande Guerra, não havia mais espaço para cooperação entre as nações e seria necessário buscar outras explicações para pautar a convivência internacional. O pensamento wilsoniano, que em muito estava ligado a Kant, tornou-se desacreditado e culpado pelo crescimento da Alemanha nazista e a total passividade dos demais Estados europeus. A convivência pacífica, assim como a liberdade e o não-intervencionismo passaram a ser elementos questionáveis no sistema internacional.
Os autores que iniciaram essa linha de pensamento tornaram-se conhecidos como Realistas, pois suas teorias baseavam-se na observação da realidade e não em prescrições morais. Assim, partiam do princípio de que o sistema internacional era anárquico, ou seja, não havia uma autoridade superior que pudesse se sobrepor ao Estado. Algo como o estado de natureza de Thomas Hobbes. Na verdade é a visão oposta à organização interna do Estado, que sustenta sua existência através de uma hierarquia entre pessoas e instituições.
Nessa nova visão do status das nações perante o sistema internacional não havia espaço para cooperação, mas sim para uma competição acirrada entre os Estados em busca da autopreservação. A linha de argumentação desses teóricos estava fortemente influenciada por Maquiavel, Hobbes e Clausewitz. Para o Estado sobreviver deveria empenhar-se na busca pelo poder; somente assim faria com que seus adversários pensassem duas vezes antes de tentarem atacá-lo.
Morgenthau, para esquematizar a proposta realista, propõem seis princípios básicos para compreender as relações entre os Estados. Seriam eles: 1) A atuação dos Estados no sistema internacional não sofre alterações porque é determinada pela natureza humana, e essa é imutável. Dessa forma, em qualquer lugar e tempo o comportamento político estará sempre em busca da realização do interesse estatal; 2) interesse, para o Estado, é entendido como poder. Contudo esse poder é especificamente político, e distinto de economia, religião e ética. Para alcançar seus objetivos políticos o Estado age racionalmente; 3) os interesses variam, mas são resultados de manipulação política; 4) a política internacional tem suas leis morais próprias. Os governantes não seguem leis abstratas universais, mas sim buscam defender os interesses da população que representam; 5) as nações não abririam mão de seus interesses, mesmo que estivessem baseados em ações com fins morais. A paz só pode existir através de negociações que não conflitem com os interesses dos Estados; e, 6) a análise da política como uma esfera distinta das demais que interagem com a vida do homem em sociedade é a maior virtude do Realismo, porque só assim é possível compreender a política em sua plenitude.
Apesar de iniciativas idealistas, como a criação das Nações Unidas (ONU) e sua antecessora, a Liga das Nações, cada vez mais os realistas passaram a ganhar espaço no cenário internacional. Inclusive devido ao fato de que, com a bipolarização do mundo durante a Guerra Fria, várias outras explicações foram agregadas à teoria Realista para lhe dar suporte.
O interesse do Estado, acima dos demais interesses, tornou-se notório, e as questões subjacentes somente eram discutidas em esferas inferiores à do Poder. O dilema de segurança, que consiste em buscar uma explicação para a manutenção da paz, ratifica a premissa realista porque deixa claro que os Estados buscam fortalecer-se para alcançar a supremacia no sistema internacional e, como nenhum Estado sabe o verdadeiro potencial de seu adversário, entra num embate sem armas. A assimilação da tecnologia nuclear por parte das potências também foi outro fator que possibilitou a manutenção da paz. O não enfrentamento direto estaria ligado ao fato de que não haveria vencedores caso partissem para um embate militar.
Com as modificações que o sistema internacional passou a sofrer devido à interação cada vez maior de atores não-estatais, os realistas não mais conseguiam apresentar justificativas plausíveis para seu ordenamento. Com isso, em 1979, Kenneth Waltz lança seu livro Theory of International Politics, em que parte do princípio de que os Estados não atuam no sistema internacional de forma estática e que suas decisões estão ligadas, diretamente, às necessidades que surgem e aos estímulos do meio. Waltz introduz a teoria sistêmica na rigidez realista. As decisões dos Estados passam a ter relação direta com a influência dos demais atores, e também à hierarquia de assuntos – dita fundamental –, são agregados outros assuntos de natureza não militar.
Com base no novo sistema internacional – e na interpretação que Waltz faz dele – surge uma nova linha de pensamento, chamada de Neo-realista. O Estado não deixa de ser um ator de grande importância, mas abre caminho para se discutir a interação com os demais atores do sistema internacional.
Políticos ligados ao neo-realismo alcançam um status diferenciado a partir do momento em que conseguem implementar suas idéias à política externa norte-americana. Nomes como Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski acabam por trabalhar diretamente com os presidentes dos EUA e implementam como política de Estado sua maneira de entender o sistema internacional.
O entendimento do sistema internacional por parte desses policymakers repercutiu diretamente nas relações dos Estados Unidos com os países muçulmanos do Oriente Médio. A forma de perceber o Islã nem sempre agregou aliados aos estadunidenses, pelo contrário, alguns autores salientam que essa pode ter sido a raiz dos ressentimentos que geraram os ataques de 11/09.
Assim, nesse artigo, propomos traçar, em linhas gerais, a base do pensamento dos principais autores neo-realistas para, em seguida, estabelecermos a discussão com Bernard Lewis.


AUTORES NEO-REALISTAS

Zbigniew Brzezinski
Zbigniew Brzezinski foi assessor presidencial para Assuntos de Segurança Nacional e diretor do Conselho de Segurança Nacional dos EUA durante o Governo Carter. Brzezinski assume uma posição realista maquiavélico-hobbesiana das relações entre os Estados Nacionais.
Em suas obras esse autor realiza análises geopolíticas, aponta linhas de ação para os EUA e descreve prováveis desdobramentos e cenários futuros. Por defender os interesses americanos por meio de valores relativos, Brzezinski descreve algumas estratégias regionais ou pontuais para a obtenção dos objetivos americanos.
O autor destaca a importância da Eurásia como a região mais importante para a obtenção e manutenção do poder mundial – numa perspectiva mackinderiana. Há uma alteração na identificação do rival com o fim da URSS, mas a concepção do Heartland permanece. A dominação completa da Eurásia seria o equivalente à supremacia global.
Para Brzezinski, os EUA devem definir a nova ameaça. Identificar o terrorismo como inimigo ignora o fato de que esse fenômeno é uma técnica, e não se declara guerra contra uma técnica. Atrás de cada terrorista há um problema político.
A questão para os EUA estaria entre dominar o mundo ou liderá-lo. Brzezinski acredita que a hegemonia americana seja uma situação temporária, e sua duração dependerá muito da atuação americana e da disposição em cooperar com os aliados. Além disso, pontua que os EUA são os últimos a garantir a estabilidade mundial e que a “retirada” dos EUA seria catastrófica para o mundo.
Dentro das transformações ocorridas nos últimos anos, esse pensador cita o avanço da tecnologia e o impacto desta na defesa dos EUA. Para ele, o território dos aliados dos EUA ao longo dos oceanos não oferece mais um escudo de longa distância para a América. Brzezinski ressalta atualmente o fim da segurança soberana dos Estados. Os EUA garantem a estabilidade global, enquanto a sociedade americana estimula as tendências sociais globais que diluem a soberania nacional tradicional.
Portanto as alternativas estratégicas, no longo prazo, para os EUA são o comprometimento em uma transformação gradual administrada cuidadosamente da sua própria supremacia para um sistema internacional auto-sustentável, ou confiar primariamente no seu poder nacional para se “ilhar” da anarquia internacional que se seguiria ao seu descomprometimento.
Ademais, se os EUA quiserem manter a vida e a liberdade que há dentro do país, eles deverão manter a legitimidade de sua predominância fora do país. O que significa nada menos que cooperação genuína com aliados, principalmente com a UE. Brzezinski reforça a falta de confiança nos EUA pelos outros países, incluindo os seus aliados, resultando em um déficit de credibilidade e no crescente isolamento americano no cenário internacional.

Robert Jervis
Jervis é professor de Política Internacional na Universidade de Columbia e presidente da American Political Science Association. Autor de grande relevância no cenário internacional, dentre seus livros podemos destacar System Effects: Complexity in Politics and Social Life, publicado em 2001.
Segundo Jervis, 11 de setembro de 2001 significou o declínio do Estado. Essa afirmação pode ser entendida a partir da seguinte premissa: o Estado foi concebido para defender sua população das ameaças externas, mas falhou. Para os contratualistas clássicos esse é o elemento principal do pacto firmado entre povo e governo, e significou a passagem do estado de natureza para o mundo civilizado. O Estado, falhando em sua obrigação primeira, acaba por possibilitar questionamentos acerca de sua funcionalidade. Por outro lado, Jervis vislumbra uma segunda maneira de entender a função do Estado, como um parceiro das organizações transnacionais terroristas de fundamental importância – isso porque seria o único que viabiliza a ação dessas organizações, através da cessão de espaço para treinamento de guerrilheiros, possibilidade de operar no sistema financeiro, etc. Não obstante a isso, o Estado também foi o único que conseguiu organizar o movimento de reação ao ter sido violado – o autor refere-se, aqui, às atitudes tomadas pelo governo norte-americano logo após os ataques de 11 de setembro. O Estado torna-se um parceiro, e não mais o único ator do sistema.
Um aspecto bastante salientado por Jervis é o tipo de hegemonia construída pelos EUA – uma liderança hegemônica. Ela acaba por gerar ressentimento nos países europeus, porque tende a sobrepor os valores norte-americanos aos demais povos e aplicar as leis somente quando lhe é conveniente. Como exemplo pode-se utilizar a intempestiva ação no Iraque. Não houve qualquer respaldo da comunidade internacional e alguns países europeus se posicionaram claramente contra, e mesmo assim a ação ocorreu.
Jervis defende a política Realista assumida pelo governo norte-americano no caso do Afeganistão, onde os EUA logo fizeram alianças com Paquistão, Uzbequistão e Tajquistão com o intuito de evitar o alastramento do terror. É certo que, de acordo com a lógica sistêmica, essas alianças são temporárias e só perduram enquanto houver interesse. Tampouco representam qualquer afinidade política entre os atores envolvidos. Muitas dessas alianças se sustentam através de favorecimentos econômicos.
Numa análise dos grandes desafios que o século XXI suscita, Jervis aponta para a potencialização das ações terroristas que, cada vez mais se utilizam da tecnologia do mundo globalizado.

Robert D. Kaplan
Kaplan é correspondente do The Atlantic Monthly e autor de vários livros sobre Relações Internacionais, dentre eles Warrior Politics: Why Leadership Demands a Pagan Ethos (2002), onde expõe com bastante clareza seu pensamento realista.
A obra de Kaplan sofre bastante influência dos pensadores que originaram o Realismo – Maquiavel, Hobbes e Clauzewitz –, e assim, para estabelecer sua linha de raciocínio e justificar sua argumentação, constantemente utiliza-se de analogias históricas.
Como premissa de seu pensamento Kaplan não acredita que estejamos vivendo num “mundo moderno”; defende a tese de que os problemas são os mesmo dos povos da Antiguidade e que a evolução tecnológica não é um fator preponderante para justificar uma “nova realidade”. Isso pode ser explicado através da natureza humana, que continua a mesma, tendo seu comportamento guiado pelos impulsos de medo, interesse próprio e honra, tanto na época de Tucídides como hoje.
Devido ao sistema anárquico em que vivemos, Kaplan sugere que a política da intervenção seja aplicada com o intuito de preservar o Estado. Com base nessa filosofia, a invasão ao Iraque foi defendida como necessária para a manutenção da geopolítica da região e também como parte da guerra contra o terrorismo global.
Mesmo que houvesse a preocupação com a existência de Armas de Destruição em Massa (ADMs) no Iraque e que a situação de minorias estive se agravado devido ao desrespeito aos direitos humanos, Kaplan não acredita que esse último argumento seja relevante. E vai além ao salientar que num mundo impregnado de ameaças e extremamente competitivo não caberiam direitos humanos. O que prevalece é o exercício da força por parte das potências e posteriormente a utilização de argumentos mais assimiláveis pela comunidade internacional – algo que, em última instância, seria um exercício de retórica para efetivar a supremacia norte-americana.
Incisivo em suas colocações, Kaplan tece críticas à aplicação da democracia para todos os Estados. Segundo ele, nem sempre é salutar a implementação de regimes democráticos, porque a democracia é muito volúvel e possibilita que grupos utilizem seus valores para benefício próprio, ao passo que governos autoritários conseguem reduzir conflitos étnicos e religiosos com mais facilidade.
Kaplan também elenca os problemas que os EUA terão que resolver nesse início de século: terrorismo, crimes cibernéticos, movimentos populistas estimulados por crenças religiosos e sectarismos, e o crescimento populacional nos países subdesenvolvidos. Aponta também para a necessidade de o Islã passar por reformas em que aceite a secularização do Estado. A religião dominando o Estado é algo pernicioso, afirma esse autor.

Paul Kennedy
Kennedy é professor de História e diretor de International Security Studies na Universidade de Yale. Sua obra de maior destaque é Rise and Fall of the Great Powers (1988).
Segundo esse autor o sistema de Estados pós-1945 é um sistema de convivência na pluralidade – pluralidade de culturas, línguas, Estados, religiões. Mas com o tempo os próprios EUA tornaram-se os primeiros a borrar essas fronteiras, especialmente as fronteiras entre os diferentes Estados. Isso ocorreu por meio das demandas comerciais (principalmente petróleo) e da revolução nas comunicações, em grande parte, protagonizadas pelos Estados Unidos, e que tornam os países mais interdependentes entre si. Nesse contexto estaria ocorrendo, na esfera internacional, uma tendência inexorável à difusão do poder.
O grande desafio para os EUA, nessa nova realidade internacional, seria conseguir lidar ao mesmo tempo com as ameaças em dois níveis: as tradicionais, que são militares e políticas, e as ameaças de tipo novo ou difuso, que não podem ser claramente atribuídas a este ou aquele país em específico – como é o caso do novo terrorismo. Para complicar, há a possibilidade de que as medidas para combater as ameaças em um nível sejam conflitantes com as medidas para combater as ameaças no outro nível. Mas o principal problema é que, apesar da necessidade urgente, ainda não há uma moral e uma estratégia claras para orientar a ação estatal. É nesse sentido de ausência de uma nova moral e uma nova estratégia que o autor condena como imoral a intervenção sobre o Iraque.
Para conseguir combater nesses dois níveis (ameaças novas e antigas) Kennedy sugere a necessidade de uma reavaliação profunda das próprias características basilares dos EUA. De qualquer forma, Kennedy considera essencial unir um ideal democrático a práticas geopolíticas.
Os Estados Unidos deveriam também tomar cuidado para não se expandirem demais, pois isso aumentaria sua impopularidade externa e os desviariam de seu “caminho virtuoso”. Na verdade o próprio poder tradicional dos EUA teria sido o responsável pelo advento dessas novas formas não-convencionais de guerra – como o terrorismo fundamentalista muçulmano.

Henry Kissinger
Kissinger foi Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA no final dos anos 1960, e Secretário de Estado de 1973 a 1977. Seus livros de maior destaque são A World Restored (1957) e Diplomacy (1994), nos quais ele tenta atualizar os preceitos realistas do concerto europeu do século XIX para as realidades da Guerra Fria e dos anos 1990.
Sua idéia básica é a de que a luta dos Estados pelo poder é uma realidade inegável, mas que pode ser controlada pelos governantes, isto é, pela alta diplomacia presidencial. Admite que os Estados estão se tornando mais fracos, dada a capacidade que algumas organizações privadas vêm adquirindo de afetar as seguranças nacional e internacional.
O sistema internacional estaria transitando de uma hegemonia (estadunidense) a uma situação de liderança (também dos Estados Unidos). Nesse contexto o papel da alta diplomacia torna-se ainda mais relevante, na medida em que a liderança internacional deve fundar-se preferencialmente em um consenso internacional.
De forma coerente com seu pensamento anterior aos ataques de 11 de setembro, Kissinger fundamenta a política externa dos EUA em um idealismo principista – como o moralismo wilsoniano – para o longo prazo. Mas esse idealismo deve, nas ações imediatas que são necessárias, aceitar os conselhos da razão de Estado e da Realpolitik. Ou seja, o consenso internacional deve fundar-se nos preceitos do equilíbrio de poder, que são mais pragmáticos e operacionais, e portanto mais adequados a uma resposta imediata ao 11 de setembro. Assim sendo Kissinger propõe que os EUA tomem medidas drásticas contra o terrorismo – de preferência, mas não necessariamente, respaldadas por um consenso internacional.
As medidas proposta são uma retaliação forte (já que meias medidas apenas enfureceriam ainda mais o inimigo sem eliminá-lo, e portanto prolongariam os ônus da guerra de ambos os lados), a idéia de preempção (isto é, prevenir-se do surgimento de ameaças à segurança nacional e internacional), tentar construir um consenso internacional que apoie essas medidas, reavaliar os serviços estadunidenses de inteligência, e repensar constantemente suas políticas para que estas causem o mínimo possível de ressentimento externo.
Kissinger vê a guerra contra o Iraque como uma continuação da guerra contra o terrorismo, pois se encaixa na idéia de preempção e combate à difusão das armas de destruição em massa.

Charles Kupchan
Charles Kupchan é professor de relações internacionais na Universidade de Georgetown. Foi diretor para Assuntos Europeus no Conselho de Segurança Nacional dos EUA durante a primeira administração de Bill Clinton.
Também para Kupchan os centros de poder competem por posição, influência e prestígio. Ele acredita que a volta do mundo multipolar seja inevitável e que o fim da era americana chegará, tanto por problemas internos quanto externos.
Esse autor analisa as relações entre os Estados nacionais sob uma perspectiva histórica, realizando diversas analogias com o passado. Compara, por exemplo, a cisão entre a União Européia e os Estados Unidos com a ocorrida no império romano, quando da criação do império romano do oriente.
Há muitos paralelismos, semelhanças e convergências entre Kupchan e Brzezinski. Dentre estes estão a aceitação do Heartland mackinderiano, a sugestão de “guias práticos para a ação” dos EUA frente às ameaças e desafios, a necessidade de implementar uma política baseada na cooperação para os EUA, a moderação estratégica e a revitalização das instituições internacionais, e a classificação do terrorismo como evasivo e de segundo plano.
Contudo, Kupchan difere muito de Brzezinski em relação à nova ameaça. Para Kupchan, o principal competidor dos Estados Unidos será a União Européia, a quem Brzezinski chama de principal aliado americano. Enquanto Kupchan percebe uma divisão entre UE e Estados Unidos frente ao Iraque, ressaltando a vontade européia de fazer frente aos EUA, Brzezinski destaca a importância da aliança entre UE e os EUA e da expansão ocidental rumo à Rússia, afirmando que a UE é extremamente importante, pois também compartilha as mesmas crenças que os EUA, portanto, valores e interesses devem ser divididos. Para Kupchan, além da União Européia não compartilhar os mesmos valores que os Estados Unidos, ela já está no Heartland e tende a se expandir mais para o leste para consolidar essa posição, e seus interesses políticos e econômicos irão colidir com os dos Estados Unidos.

John J. Mearsheimer
Mearsheimer é norte-americano, nascido em 1947. Seguiu carreira militar entre os anos 1965 e 1975. Atualmente leciona na Universidade de Chicago. Autor de vários livros sobre Relações Internacionais, com destaque para The Tragedy of Great Power Politics, de 2001.
Mearsheimer considera-se próximo à linha de pensamento de Kenneth Waltz, exceto pelo fato de que, em última instância, os Estados são mais agressivos que na concepção de Waltz. Para um Estado obter êxito deve dominar o sistema; sendo assim, se ele for o mais poderoso dentro de um determinado sistema evitará que outros procurem entrar em atrito direto consigo.
Como neo-realista e defensor do “vigor do Estado”, Mearsheimer sustenta a tese de que os Estados não estariam enfraquecendo com o final da Guerra Fria. Para tanto, argumenta que vivemos um período em que há o fortalecimento do nacionalismo e da luta para a criação de Estados nacionais, como no caso da Palestina.
No tocante à concepção do sistema internacional, defende a tese de que é impossível haver apenas uma potência hegemônica no globo; o que há são hegemonias regionais. Os EUA são uma potência hegemônica no hemisfério ocidental e a China caminha para alcançar o mesmo status na Ásia. Ainda, para a manutenção das áreas de influência é salutar que não haja Estados em competição como no caso da Europa. Isso porque, a ausência de um sobrepondo-se aos demais impediria o surgimento de outro poder hegemônico em sua área de atuação.
Analisando a estratégia estadunidense, Mearsheimer apresenta uma clara distinção entre sua ação política interna e externa. Os EUA são um país com política interna liberal (acredita na democracia e que existam bons e maus países – de acordo com seus regimes –, acredita na liberdade de comércio, etc), mas pauta sua política externa com base numa visão realista dos fatos. Pressupõe que todos os países são iguais dentro do sistema internacional, independente do regime político escolhido. O que diferencia um Estado do outro é seu comportamento dentro do sistema, mas, no fundo, todos ambicionam alcançar o poder.
Mearsheimer posiciona-se enfaticamente contra a ação norte-americana no Iraque porque, argumenta, mesmo que Saddam Hussein possuísse ADMs, dificilmente conseguiria negociá-las com organizações terroristas, pois correria o risco da forte represália norte-americana. Mearsheimer defende abertamente uma aproximação aos países do Oriente Médio e a busca pela integração baseada em “ouvir o outro”. É um neo-realista que privilegia saídas diplomáticas ao invés do uso sistemático da força. Acredita que se houver uma maior aproximação ao mundo muçulmano poderá haver uma redução substancial do terrorismo – que não pode ser considerado um fenômeno novo, mas o resultado de transformações substanciais com a assimilação das tecnologias “globalizantes”.

NEO-REALISMO VERSUS CULTURALISMO

Considerando o Neo-realismo como sendo uma revisão do Realismo, haja vista o fato de que o mundo não mais podia suportar uma análise partindo, somente, do ponto de vista do Estado, é possível fazer conjecturas acerca da complementaridade dos pensamentos Neo-realista e Culturalista no que tange às questões relacionadas ao Islã e mundo árabe.
Como expoente do pensamento culturalista esse artigo utilizar-se-á das proposições do emérito orientalista Bernard Lewis que, em artigo datado de 1990, As raízes da raiva muçulmana, já apresentava suas preocupações acerca de um possível choque de civilizações.
Entendendo que Lewis considera os conflitos entre ocidentais e muçulmanos como algo não muito claro para ambos os lados e, por isso, passível de manipulação por grupos minoritários; primeiramente chama a atenção para o risco de supor que todo muçulmano seja fundamentalista, e todo fundamentalista, terrorista. Mesmo dentro do pensamento fundamentalista há apenas uma pequena parcela que se auto-intitula defensor do Islã e parte para ataques diretos contra os ocidentais. A al-Qaeda é um notório exemplo desse ato extremo.
Apesar da gama de autores que podemos classificar como neo-realistas, e de haver peculiaridades entre eles que muitas vezes os levam à contradição, para efeito analítico propor-se-á neste artigo abstrair essas disparidades e tratar os atores como uma linha de pensamento homogênea. A partir desses princípios comuns é que estabelecer-se-á o diálogo com os culturalistas.
Autores neo-realistas, compreendendo a preocupação que se deve ter com os povos do Oriente Médio, expressaram-se claramente contra a invasão do Iraque. Para eles, a relação entre as duas civilizações já estava demasiadamente esgotada e o ataque a um país árabe somente serviria como argumento para os grupos extremistas reforçarem ou retomarem sua repulsa pelo Ocidente. A melhor saída seria partir para o diálogo com os países árabes e “ouvir suas necessidades” dentro da cooperação sugerida como instrumento necessário para a manutenção da hegemonia americana. Alguns autores neo-realistas não deixam de considerar as razões de Estado, no entanto, acerca do ataque ao Iraque, observam que, mesmo tirando do poder um líder como Saddam Hussein, dificilmente alcançariam resultados positivos no longo prazo.
Nesse aspecto, é impossível dissociar a análise neo-realista da visão de Lewis. Por mais que os EUA consigam atrair para seu lado o apoio de lideranças árabes (chefes de governo), o estrago provocado por agressões feitas a países muçulmanos dificilmente será assimilado. Os laços históricos, religiosos e culturais são mais fortes que vínculos econômicos recentes. Autores neo-realistas como Mearsheimer entendem que os EUA devem agir com rigor para a manutenção do status quo de potência hegemônica.
As alterações sofridas no Oriente Médio pela ação dos ocidentais são enfocadas pelas análises de Lewis. Contrariando alguns orientalistas, Lewis parte do pressuposto de que o enfraquecimento da cultura muçulmana não foi ocasionado por eventos externos, mas sim por seu próprio enclausuramento, sua negativa em relacionar-se com o Ocidente, considerando-se, assim, superior e auto-suficiente. Há, também, fortes questionamentos acerca dos empecilhos gerados pela estrutura da religião muçulmana, mais especificamente devido à resistência à secularização. Lewis atribui a esse fato uma das causas da dificuldade do Islã em se modernizar, e encontra convergência com o pensamento de Kaplan que entende a ligação entre política e religião como sendo perniciosa. Kaplan propõe uma transformação como a Reforma protestante no Islã.
Contudo, ao analisar as intervenções em países do Oriente Médio que estariam fundamentadas em questões humanitárias, Kaplan é enfático ao afirmar que não reconhece tais valores e que as supostas diferenças entre Ocidente e Islã seriam mero exercício de retórica dos EUA para buscar sua hegemonia.
A convivência na pluralidade, que Kennedy enxerga no mundo pós-1945, teria sido solapada pela própria ação dos Estados Unidos, via globalização da comunicação e do comércio. Não tivesse se expandido como o fez, talvez os EUA não tivessem causado tanta ofensa e ressentimento nos muçulmanos. Para os neo-realistas, a expansão tecnológica favoreceu a resistência islâmica e as disparidades sócio-econômicas são atualmente percebidas por grande parte da população mundial. Lewis, ao contrário, acredita que o choque já estava dado desde sempre, de forma inerente a essas duas culturas. O fato de serem ambas universalizantes já traz o dado que em algum momento acabariam entrando em contato, e o fato de basearem-se em “verdades reveladas” (sejam divinas, científicas ou morais) já adianta a intolerância de uma com relação à outra. A maior culpa dos EUA na visão dos muçulmanos, segundo Lewis, é terem separado a Igreja do Estado, e terem levado a cabo a pretensão de legislar para si mesmos – sendo o poder de criar leis uma prerrogativa de Deus.
No tocante às ações das organizações fundamentalistas islâmicas, alguns autores neo-realistas apontam como viabilizador o processo de globalização que o mundo sofreu e vem sofrendo. Assim sendo, é exemplar a dependência que grupos como a al-Qaeda nutrem pelo sistema econômico e de transportes para implementar seus ataques. Ao mesmo tempo em que Lewis concorda com a proposição dos neo-realistas com relação aos males que a globalização trouxe devido à intensificação do conflito, nos apresenta outra questão que poderia ser inconciliável com esse propósito. Para Lewis os fundamentalistas islâmicos não estariam insatisfeitos com a modernização insuficiente, mas sim com os excessos dela. Lutariam para retornar ao verdadeiro Islã, pois os valores islâmicos teriam sido corrompidos quando foram adotados os valores ocidentais. Dessa forma o Islã se beneficiaria com a modernização, sem adotá-la por completo – ou seja, sem ocidentalizar-se.
O aspecto mais grave da luta entre as diferenças entre Islã e Ocidente acaba resultando na utilização do terrorismo como meio para alcançar seus objetivos. Entretanto autores neo-realistas salientam a necessidade de deixar claro que a guerra contra o terrorismo não é um confronto de civilizações, e sim um confronto entre atores políticos internacionais. Para eles, o terrorismo denota sempre necessidades políticas, já que é uma técnica utilizada para obter tais fins. Ao mesmo tempo é um conflito histórico, na medida em que as partes da contenda são, de um lado, o Estado, e de outro, a personificação da superação do Estado. Lewis, por sua vez, leva em conta a variável cultura/religião, atribuindo-lhe o papel central no confronto.
O choque entre as culturas ocidental e islâmica não pode ser mitigado, justamente por ser cultural, isto é, por dizer respeito justamente a questões de identidade. O problema talvez possa ser resumido, segundo Lewis, em uma tentativa do ocidente levar sua cultura para o mundo muçulmano, e da incapacidade deste de superar a miséria e o subdesenvolvimento gerados por esse contato. Essa incapacidade muçulmana é ainda mais desesperadora – e, portanto mais potencializadora do choque – porque mostra que os muçulmanos não conseguem igualar-se ao Ocidente, seja por seus próprios métodos, seja aceitando a modernização ocidental.
Para muitos autores neo-realistas as causas do terrorismo direcionado aos Estados Unidos podem ser parcialmente explicadas pelo envolvimento político americano no Oriente Médio, como, por exemplo, seu apoio a autocracias e a Israel. Em contraposição a isso, Lewis entende o terrorismo como uma resposta islâmica ao jugo ocidental sobre o mundo muçulmano. Assim como os atrasos do Islã frente ao ocidente são resultantes principalmente de problemas internos da umma (comunidade muçulmana), “as raízes da raiva muçulmana” seriam derivadas da incompatibilidade do Islã com a ocidentalização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por muito tempo os realistas cegaram-se para as transformações que o mundo vinha sofrendo e apegaram-se às razões de Estado para explicar o funcionamento do sistema internacional. Notoriamente a defasagem analítica gerou lacunas que poderiam ser elencadas como as causadoras de fenômenos estranhos a seus anseios. O terrorismo sempre foi algo desconsiderado pelos realistas, pois não se tratava de uma ação praticada pelo ator estatal, dessa forma, pouco foi estudado e seu potencial subestimado.
Tardiamente estabeleceu-se uma corrida contra o tempo para entender o que seria o terrorismo e as razões pelas quais essa estratégia de ação estaria sendo assimilada com tanta propriedade por organizações fundamentalistas islâmicas. Essa foi a segunda falha dos realistas que seus sucessores, os neo-realistas, tentaram suprir. Mas compreender a estrutura e a motivação de organizações se tornou muito complicado devido ao fato de a análise sempre partir dos interesses dos Estados e abstrair os valores culturais.
Na contrapartida dos realistas, pesquisadores como Bernard Lewis, defendem a tese de que outra via deveria ser aberta para se trilhar o caminho que levaria à redução de diferenças entre Ocidente e Islã no, já em curso, choque de civilizações. A ação ocidental no Oriente Médio já havia gerado ressentimento demais e, somando a isso a estagnação em que os muçulmanos encontravam-se, eleger um responsável para sua incapacidade não seria uma possibilidade muito distante. De fato, pode-se dizer que o fundamentalismo islâmico ganha muita força quando assume com clareza quem é seu inimigo: os valores ocidentais personificados pelos Estados Unidos.
Por mais tolerante que possa ser a visão culturalista de Lewis, o diálogo com o mundo muçulmano acabou sofrendo um violento golpe com os atentados de 11 de setembro. Nesse sentido houve a revalorização da visão realista, agora sob a roupagem neo-realista, por tangenciar alguns aspectos relevantes para entender o funcionamento do sistema internacional, mas fortalecer o Estado. Muitos chegaram a questionar a vitalidade desse ator internacional (o Estado), mas, conforme os teóricos do neo-realismo, nunca foi tão imprescindível sua existência. De um lado servindo de base para organizações terroristas se mobilizarem e, de outro, criando condições para defender sua população, como os EUA o fizeram no pós 11/09.
Neo-realistas utilizam claramente pressupostos que estão presentes na visão culturalista, mas mesmo assim não conseguem proporcionar explicações que atendam à demanda de um sistema internacional que se auto-supera com mais velocidade que as premissas da teoria. O neo-realismo, mais busca justificar estratégias de dominação e tentativas de manutenção de hegemonias que atender ao anseio da população global, ou qualquer valor que possa ser reconhecido como “universalizante”. Autores neo-realistas sugerem que a rivalidade entre ocidente e o Islã seja derivada das políticas ocidentais no mundo muçulmano e do jogo de poder no qual os Estados nacionais estão naturalmente inseridos. Consideram o terrorismo como tática de grupos que demandam uma maior participação política ou econômica, dentro de um contexto recentemente flexibilizado em relação à soberania dos Estados nacionais. Observamos uma complementaridade entre essa escola e o pensamento de Lewis.
Embora haja muitas semelhanças entre os neo-realistas e os culturalistas, como a consideração de cálculos de riscos e vantagens no que tange à política externa do mundo muçulmano como variável importante da análise, Lewis aborda questões culturais, religiosas e
sociológicas que são praticamente ignoradas pelas análises dos autores neo-realistas.
Os neo-realistas tendem a formular estratégias para a obtenção de objetivos claros que visam à manutenção do poder americano nas diferentes regiões do mundo, e costumam vislumbrar cenários e desdobramentos futuros para guiar a política externa norte-americana, partindo primordialmente dos Estados Nacionais como atores mais importantes. Contudo, dentro dessa
perspectiva limitada fica evidente a falta de explicações sobre as causas e demandas dos grupos associados ao terrorismo, principalmente os muçulmanos.
Para Lewis às vezes o ódio transcende a hostilidade a interesses, ações, políticas ou até mesmo países específicos, transformando-se numa rejeição à própria civilização ocidental. Fatores como a ausência de separação entre religião e Estado no Islã, sua distribuição global, ambições universalizantes, sua contínua vitalidade – assim como o cristianismo –, a idéia do capitalismo e das democracias ocidentais como alternativas autênticas ao estilo de vida que os
fundamentalistas desejam manter ou restaurar, e, principalmente, o domínio de infiéis sobre “crentes verdadeiros” são apontados como as causas da ira muçulmana.
Contudo, Lewis acredita que ainda há parcelas significativas do Islã que compartilham crenças e valores com o ocidente. A partir disso, haveria uma oportunidade para as políticas neo-realistas enfraquecerem o fenômeno fundamentalista. Parece, assim, que o pensamento culturalista traz contribuições importantes para o entendimento do fenômeno do fundamentalismo islâmico – contribuições que podem ajudar na elaboração de políticas preventivas que visem conter o terrorismo que não por via militar.

Notas
* Mestrando em Geografia Humana
** Doutorando em Ciências Políticas
*** Doutorando em História Social


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