domingo, 14 de setembro de 2008

RESENHA "SEM CONCESSÕES AO LEITOR"

Revista Perspectivas em Educação - ano 1 - nº 03 - ISSN 1983-6813

Renatho Costa*

GRECO, Felipe. Memórias do Asfalto. São Paulo: Editora Desatino, 2007.

Memórias do Asfalto é o terceiro livro de Felipe Greco, seu segundo romance. Em seu primeiro livro de contos intitulado Caçadores Noturno, Felipe enveredava pela noite paulistana para decifrá-la, ou melhor, radiografá-la através de seus personagens que dificilmente encontrariam espaço para viver sob a luz do dia. Outsiders!
O Coveiro foi seu primeiro romance. Nele somos convidados a acompanhar a trajetória de Ramiro. Novamente o cenário dessa epopéia marginal – se é que podemos utilizar uma classificação como essa sem restringir a grandeza do romance – se passa nas noites paulistanas, em regiões da cidade onde a população prefere não olhar (Praça da República, cracolândia, etc.), ainda mais ajudada pela pouca iluminação desses locais.
Em 2007, Felipe Greco lançou Memórias do Asfalto. O romance já havia sido agraciado pela premiação de melhor obra juvenil concedida pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (PAC 26). Um prêmio que atraiu a atenção de um público – o jovem, o adolescente – pouco acostumado com a temática de Felipe.
Nessa obra, Felipe Greco não abandona suas referências paulistanas, ou seja, acompanhar a trama de Xexéu – o garoto protagonista desse romance – é fazer um tour pelas partes da cidade que a população preferiria esquecer. Praça da Sé, Centro Velho, Febem, dentre outros lugares, ambientam a trajetória do menino.
Xexéu não é um menino diferente dos demais que vivem na periferia de São Paulo, ou de qualquer grande cidade brasileira. Nesse sentido, a ambientação regional do romance em nada prejudica no desenvolvimento da trama, contudo, àqueles que conhecem a cidade têm a impressão de estarem vivendo a ação no momento em que é narrada, tal a maestria narrativa de Felipe.
Esse menino negro, pobre, criado pela mãe e avó, com um irmão mais novo, reflete com fidelidade ímpar a realidade brasileira. Nela se constata a mudança do paradigma social, ou seja, a mulher assumindo a responsabilidade por manter a família e a casa. Essa é a obrigação da mãe de Xexéu.
Mas como nada na vida do protagonista do romance é perene, a pequena estabilidade dessa estrutura familiar logo é rompida com a morte da mãe e retorno da avó para o nordeste – levando o irmão mais novo. Xexéu vai morar com o tio, mas também não fica por ali por muito tempo.
Nesse momento da história, Felipe desloca a narrativa dos conflitos familiares para expor uma realidade extremamente dura, qual seja, a vida dos meninos que moram nas ruas. E ali é salientada uma característica que muitas vezes não chega à população: os meninos e meninas que vivem pelas ruas não são livres, o espaço público é loteado pelos mais fortes:
As calçadas são territórios livres para aqueles que não precisam viver ao relento. Já para os desabrigados, elas se transformam em propriedade particular. É preciso pagar aluguel pela vaga na marquise, para tirar o encardido no chafariz da praça, pedágio pra bater umas carteiras no calçadão, dar propina pra alguns tiras pilantras não levarem o menor infrator para o reformatório; enfim, nada é de graça. (p. 31)
A passagem de Xexéu pelas ruas faz com que ele vá parar na antiga FEBEM – hoje Fundação Casa – e, nesse momento, o que poderia fazer com que a trama fosse transformada num Pixote**, muda completamente de figura porque surge a possibilidade de redenção desse menino, uma maneira para que ele deixe a vida de marginal e exponha seus dotes. Xexéu descobre-se um artista dotado de grande talento para desenhar.
No entanto, Felipe Greco não permite que seu romance seja mais um conto de fadas. Aqui ele quebra qualquer expectativa romântica de narrar uma história de sucesso, para catapultar o personagem a uma situação mais complexa ainda. Xexéu, vítima de uma armação político-eleitoreira, acaba se transformando num líder de rebelião. Como resultado, foge da FEBEM, mas fica sem ter para onde ir. Até porque, com muita “realidade”, Felipe expõe a dramática situação do jovem que não tem referências.
Sem ter para onde ir, resolve buscar uma última possibilidade de ajuda, Lurdinha. Grande paixão da infância, ainda quando vivia com sua mãe, Lurdinha era o que Xexéu sempre idealizou para ser sua namorada, esposa... mulher da sua vida!
Lurdinha se vê surpresa ao encontrar Xexéu à sua porta, auxilia o amigo e conta as notícias: se casara, mas o marido morreu. Agora estaria numa encruzilhada da vida. O que se configurava numa tragédia para Lurdinha, surgia como um lampejo de esperança para Xexéu. Com seu amor de infância Xexéu tem sua primeira experiência sexual, mas, novamente, Felipe não aponta para um happy end.
Na manhã seguinte à realização do mais secreto dos sonhos de Xexéu, Lurdinha volta para a casa de sua mãe no intuito de ser aceita novamente e poder retomar seus estudos. Xexéu tem de voltar para a rua, mas antes pega algumas roupas do ex-marido de Lurdinha e sente-se como “uma pessoa importante”.
A crítica social de Felipe Greco é de uma objetividade extremada e isso fica ainda mais evidente quando Xexéu expõe sua percepção de uma viagem de metrô trajando as roupas do ex-marido de Lurdinha:
Eu já havia andado de metrô, mas essa era a primeira vez que pagava a passagem e que ninguém me olhava feio ou tentava me expulsar do trem. Percebi então que a boa aparência e a grana no bolso eram o passaporte para esse lado da realidade que eu ainda desconhecia. (p. 65)
Outra vez, a sensação de Xexéu, isolado na cidade, é reforçada. Procurado pela polícia como um criminoso, torna-se um andarilho. O contraste entre o gigantismo da cidade e o aprisionamento, como se estivesse numa gaiola – haja vista o menino ter se tornado vítima de uma injustiça, e não pode sair dali – é explicitado ainda mais.
No desenvolvimento da trama de Memórias do Asfalto, Felipe Greco ainda traz mais uma possibilidade de redenção para Xexéu. Durante uma fuga, após brigar com alguns meninos de rua num bar, Xexéu vai parar na Pinacoteca de São Paulo. Que outro lugar poderia ir esse personagem que, segundo o autor nos apresenta, trata-se de um artista nato.
A sensação de êxtase de Xexéu diante da beleza das obras e da ostentação do edifício impressiona, mas é num acidente com um cadeirante, no banheiro da Pinacoteca, que sua vida, novamente, apresenta a oportunidade de mudança.
Um cadeirante entra rapidamente no banheiro, arremessa Xexéu ao chão – fazendo com que ele se machuque e seu nariz sangre. Em seguida entra um homem atrás do cadeirante e presta auxílio a Xexéu. O cadeirante diz para esse homem, Chicão, dar algum dinheiro para que o rapaz vá embora e não crie confusão.
Depois desse primeiro encontro, Xexéu vai caminhar pela Pinacoteca e posta-se diante de um grande quadro. Em seguida ouve uma pessoa perguntar sua opinião acerca dele. É o cadeirante.
A relação de Xexéu com esse cadeirante – Manolo Cardia – torna-se ainda mais complexa quando ele fica sabendo que o autor da obra que observava era o próprio. Com esse relacionamento Felipe Greco apresenta as múltiplas formas de trocas entre pessoas de realidades completamente distintas, mas ligadas pelo talento – nesse caso, a pintura.
A ingenuidade e bom-humor de Xexéu conquistam Manolo fazendo com que o menino aceite refugiar-se em sua casa enquanto resolve sua situação com a Justiça. Manolo fora o artista revelação que não conseguiu viver com o sucesso e tornou-se arrogante e insuportável, mas que buscava a redenção.
Manolo, já em sua casa, avalia sua vida a partir da perspectiva das possibilidades de Xexéu, e lhe diz:
- Mas nesta manhã, quando eu quase quebrei o seu nariz naquele banheiro, foi como se um anjo surgisse de repente para me mostrar que, mais uma vez, eu estava fazendo a pior escolha. Depois, você, com essa sua admirável teimosia em continuar sorrindo, apesar de tudo que já lhe fizeram sofrer, veio e foi passando como um rolo compressor por cima do meu egoísmo. Muito obrigado, meu amigo, por me curar da minha cegueira! Sua alegria me salvou! (p. 98-9)
Como a trama de Felipe Greco é uma autêntica montanha russa, novamente o leitor é levado a vislumbrar que a redenção do pintor Manolo possa ser o caminho que levará Xexéu à tranqüilidade. Mero engano.
Revelar o final dessa obra, completamente envolvente, não acrescentaria muito à sua análise, assim, o primordial é constatar que o que atrai jovens e adultos à trama é a habilidade de Felipe Greco em mesclar a dura realidade de um “menino de rua” com o dinamismo de sua linguagem literária. Também, utilizar a narrativa em primeira pessoa cria maior cumplicidade com o leitor, fazendo com que as angústias, alegrias e esperanças sejam compartilhadas.
Dessa forma, num romance de pouco mais de cem páginas, temas de extrema importância, tais como relação familiar, exploração de menores, uso e tráfico de drogas, além de componentes políticos, são expostos para que sejam pensados nos intervalos para respirar.
Memórias do Asfalto é o tipo de romance que não se acaba com o virar da última página, até porque, a reflexão proposta pela trama transcende a si.

*Doutorando e mestre em História Social (FFLCH-USP), graduado em Relações Internacionais e Professor de Políticas Públicas para a Educação e Pesquisa Educacional na FMC.
**“Pixote – A Lei do mais Fraco” (1981), premiado filme de Hector Babenco que narra a trajetória de uma criança pela FEBEM. Esse filme possibilitou a seu protagonista, Fernando Ramos da Silva, se transformar numa celebridade nacional, contudo, na seqüência, não conseguiu desenvolver a carreira de ator e acabou morrendo em condições bastante depreciativas.

Confira o artigo em versão PDF acessando ao site: http://www.fmccaieiras.com.br/revista3/resenhas.html

ODISSÉIA INACABADA

Revista Discutindo Filosofia, nº 14, 2008 - ISBN 1808-8961

Renatho Costa

Apesar de seu ativismo humanista, a favor da desmitificação das diferenças entre o Ocidente e Oriente, o palestino Edward Said nunca retornou a sua natal Jerusalém.

No final de sua vida - em 25 de setembro de 2003 -, Edward W. Said escrevia de forma complusiva para tentar transmitir o legado de sua proposta humanista às futuras gerações. Talvez essa intenção não se manifestasse tão explicitamente quanto as suas mensagens políticas impressas nos periódicos. Talvez Said, diante da evidência da limitação do uso da linguagem num mundo que tão pouco a privilegia - ou não a entende como deveria, como ele próprio afirmava -, apenas escrevesse porque não acreditava no uso da força.

(confira o conteúdo completo do artigo na revista que encontra-se à venda, nas bancas)