sábado, 11 de fevereiro de 2012

TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA EM PAÍSES ÁRABES PODE ESBARRAR NO EXÉRCITO




24 de janeiro de 2012 | 17h 41


Para especialistas ouvidos pelo 'estadão.com.br', forças armadas poderão tentar resistir no poder

Bruna Ribeiro, do estadão.com.br

SÃO PAULO - As imagens do corpo do ditador Muamar Kadafi, carregado como um troféu pelos insurgentes na Líbia, transmitiram o sentimento de vitória e alívio do povo. O mesmo aconteceu com a queda de Hosni Mubarak, do Egito, e Zine al-Abidine Ben Ali, da Tunísia. O que é um grande mistério, depois de muita luta, é o caminho que cada país tomará para a construção da democracia. Começa aí uma nova batalha.
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O coordenador da Faculdade de Relações Internacionais da FMU, Manuel Nabais da Furriela, explica que o processo de transição varia de país para país. No Brasil, após a ditadura militar, ela foi organizada pelos próprios militares. Mas o problema de formação de partidos políticos atrapalha o processo democrático no Oriente Médio. "Você tem alguns grupos mais ou menos organizados, mas chegar a partidos políticos é um grande desafio para a sociedade". Por isso, para Furriela, deve-se levar em conta a peculiaridade cultural da região, que torna a transição diferente. "Outro aspecto é que a visão deles do que é democracia não é necessariamente a ocidental", disse.
A ausência de instituições democráticas é apontada pelo professor de pós-graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp), Renatho Costa, como um dos maiores complicadores da transição democrática nos países que protagonizaram a Primavera Árabe. "Nas ditaduras, por muito tempo, se podou todas as formas de manifestações da sociedade. Nesse momento de reconstruir as instituições, fica o receio de até que ponto os militares querem também deixar o poder", disse Costa.
Segundo o professor, no Egito, a Irmandade Muçulmana tem se manifestado contra esse processo. "Eles veem com desconfiança se os militares criarão um órgão para conduzir esse processo de transição que trabalhará acima dos poderes do primeiro-ministro ou presidente".
Segundo Furriela, os militares, nos países árabes em geral, são uma das poucas forças organizadas na sociedade. "Com a ausência de representações, você acaba partindo para aquelas organizações que não são políticas, mas são organizações institucionalizadas", disse. "Elas são organizadas e têm uma liderança, o que favorece que elas se instalem no poder e ajudem a reorganizar o país".
Quem poderia ajudar?
O departamento interno da ONU chamado Conselho de Tutela poderia ajudar os Estados em questões mais emergenciais, de acordo com o professor da FMU. "Ou simplesmente tentar ajudar a organizar as eleições, como fórum de entendimento entre os grupos políticos que estão se formando, por meio de um instrumento de diálogos com esses grupos do Exército, principalmente das forças armadas, que se estruturaram politicamente", disse. Mas, para ele, tal papel não tem sido colocado em prática. "Seria o ideal".
Já a participação da Otan nesse processo de transição democrática parece questionável. Furriela explica que a organização atlântica favoreceu na derrubada de Kadafi, ao se colocar contra o regime totalitário líbio, mas não ajudará na construção da democracia. "Não acredito que uma organização militar será a grande solucionadora dos problemas ali".
Costa concorda que este não seria um procedimento padrão da Otan. "Mas uma vez que ela atuou, como na Líbia, não existe possibilidade de abandonar o país de uma vez. Ela vai continuar dando suporte ao grupo que apoiou", concluiu. Esse suporte seria na intenção de colaborar para que o país não entre em uma guerra civil interna, mas não propriamente na construção da democracia.
Para o professor, a comunidade internacional também pode pensar em maneiras para fortalecer a economia, melhorar as condições de vida e criar programas para dar suporte aos países.

TENSÃO POLÍTICA ENTRE XIITAS E SUNITAS NO IRAQUE MATA 75 PESSOAS EM UM ÚNICO DIA


Quinta-feira, 05 de janeiro de 2012

Programa JORNAL DA CBN - 2ª EDIÇÃO

O jornalista Roberto Nonato entrevista o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) sobre os atentatos ocorridos no Iraque.

PRIMAVERA ÁRABE SOB A PERSPECTIVA DA REVOLUÇÃO IRANIANA


Mundo, 27 de dezembro de 2011

Renatho Costa
Especial para o Sul21

Nesse ano de 2011, os países árabes do norte da África e Oriente Médio estiveram sob o foco de analistas internacionais e, por conseguinte, a dita Primavera Árabefoi “desvendada” a partir de vários aspectos. Contudo, dificilmente essa série de manifestações poderá ser entendida considerando apenas uma variável. O fato motriz dos acontecimentos tem suas peculiaridades em cada Estado, ainda que exista uma raiz econômica, política e social que permeia todos esses países e que encontrou nesses movimentos uma forma de vazão.
Assim, ao analisarmos os efeitos da Primavera Árabe, um ano após o início dos primeiros movimentos populares na Tunísia, duas questões muito simples se impõem. Primeiro, será que os “revolucionários” conseguiram alcançar o resultado que pretendiam? E em segundo lugar, será que a queda dos governantes da Tunísia, Líbia e Egito, além da promessa de o presidente ieminita de deixar o cargo em fevereiro de 2012, podem ser considerados elementos significativos para a mudança de trajetória dos países dessa região?
O brotar da primavera
A partir desses questionamentos, é possível entender que o ato do jovem tunisiano, Mohammed Bouazizi, de atear fogo em seu corpo como sinal de repúdio à corrupção instalada no país não foi apenas o indicativo de que a Tunísia deveria simplesmente rever sua estrutura político-administrativa, mas sim de que o modelo que vinha excluindo grande parte da sociedade há décadas estava estrangulado e não suportaria por muito mais tempo. Com isso, o que Bouazizi fez foi semear o árido solo árabe com o desejo de romper com as amarras do modelo ditatorial de governo que estava instaurado no país desde 1956, ocasião em que ocorreu sua independência da Itália. Mas seu ato não estava fundamentado numa perspectiva marxista ou mesmo ancorado em ambições democráticas neoliberais — foi, simplesmente, a válvula de escape de um modelo de exploração do território africano que estava ligado aos interesses de uma pequena elite local e pautava-se pela lógica da economia mundial.
Assim, como a grande maioria dos países que vivenciou o processo de descolonização, aqueles do norte da África não fogem à regra, ou seja, a idealização da independência como um processo libertário e que proporcionaria soberania e real autonomia nunca chegou a ocorrer de fato devido à relação muito próxima às potências ocidentais. E, se considerarmos os tão aclamados valores democráticos, mais ainda estaremos longe da realidade vivenciada por países como a Tunísia. Ali, a partir de 1959, Habib Bourguiba se transformou em presidente vitalício e somente veio a ser substituído por Zine El Abidine Ben Ali, que permaneceu no cargo até o início de 2011.
Para a manutenção de Ben Ali no poder houve a necessidade de criar um sistema amplo, em que se privilegiava a corrupção e a repressão, além da supressão de manifestações populares. Nesse sentido, enquanto Túnis se configurava no paraíso para os turistas europeus em férias e possuía toda a infra-estrutura necessária para atendê-los, o restante do país carecia de elementos básicos para a subsistência.
A menção à Túnis como paraíso é importante porque, do mesmo modo que Ben Ali seccionou o país e mostrava aos estrangeiros apenas o que eles queriam ver, os governantes europeus, que mantinham relações próximas com o ditador tunisiano, tinham pouco ou nenhum interesse no modus operandi que Ben Ali utilizava para preservar-se no poder. No que tange à ausência de democracia na Tunísia, esse era um tema que nunca entrava na agenda dos líderes europeus e mesmo dos Estados Unidos.
Mesmo diante desse “esquecimento” por parte do mundo, a situação interna no país tornou-se insustentável e as revoltas levaram à queda de Ben Ali. Por ser a primeira etapa da Primavera Árabe, o sistema de comunicação – através da internet – entre os manifestantes não chegou a ser o fator preponderante para que se alcançasse a queda do ditador. O elemento surpresa foi o diferencial. Mas e depois?
Antes de continuarmos trilhando o caminho tunisiano, cabe trazermos para a análise os demais atores que participaram dessa primeira etapa da Primavera. Após a queda de Ben Ali os ventos sopraram na direção de vários países árabes. O Egito foi o primeiro a sucumbir diante das manifestações populares. Hosni Mubarak, que governava o país desde 1981, além de atuar de forma semelhante a Ben Ali, no que tange à repressão contra a população e à passividade frente à corrupção instalada, ainda exercia um papel chave na manutenção da geopolítica local.
O Egito, desde a assinatura do acordo de paz com o Estado de Israel (1979) tornou-se o grande aliado dos Estados Unidos na região, e o governo estadunidense passou a investir milhões de dólares no país e, por conseguinte, na manutenção do sistema corrupto instaurado por Mubarak. Novamente, o Ocidente não tinha interesse em aprofundar seu olhar sobre o modelo de governo egípcio, tampouco ouvir as vozes dos dissidentes que deixavam o país por não conseguirem manifestar-se democraticamente.
Na etapa egípcia de mobilização popular, é possível perceber que a utilização de redes sociais na internet foi fundamental para que os eventos obtivessem sucesso. No entanto, o Ocidente ainda mantinha-se reticente com relação à forte retaliação que ocorria por parte dos correligionários de Mubarak, apesar de as imagens da repressão correrem o mundo pelos canais virtuais da internet e mesmo diante das lentes da Al-Jazeera. A perspectiva geopolítica prevalecia a qualquer outro interesse democrático, humanitário, etc.
Mesmo assim, com a população mantendo-se mobilizada na Praça Tahrir e com a perda de apoio dos militares, Mubarak optou por deixar o país mesmo sem construir arranjos para garantir a sucessão ao seu filho. Caiu Mubarak, mas e depois?
O florescer da primavera
Com a queda de Mubarak, os ventos sopraram com mais força ainda na direção de outros estados do Oriente Médio — e a Líbia acabou ganhando ênfase nesse processo porque Muammar Kadafi sempre foi um líder que inspirara cuidados por parte do Ocidente. Assim, quando movimentos insurgentes iniciaram suas atividades na Líbia e Kadafi os suprimiu, a resposta do Ocidente foi criar condições para que a OTAN pudesse intervir no conflito e patrocinar os “rebeldes”. Legitimava-se a ajuda humanitária suprimindo uma liderança árabe considerada problemática para os Estados Unidos e aliados europeus. E, como prêmio de consolação, obtém-se o controle de toda a riqueza mineral líbia… pelo menos essa era a intenção dos patrocinadores da queda de Kadafi. Mas e depois?
O processo de alastramento da Primavera Árabe, depois de ter conseguido derrubar um ditador como Kadafi, que encontrava-se no poder desde 1969, parecia que seria avassalador e nada mais poderia impedi-lo. No entanto, encontrou na Síria uma barreira um tanto mais complicada de ser transposta, exatamente pelos arranjos geopolíticos da região.
A Síria consegue manter certa autonomia porque fora aliada da União Soviética durante a Guerra Fria (1947-1981) e posteriormente preservou seus laços com a Rússia. Além disso, com a aproximação ao Irã pós-Revolução Iraniana, passou a ser um ator fortalecido, devido à capacidade de articular-se ao Hezbollah – organização libanesa, considerada terrorista por vários países ocidentais, mas reconhecido como partido político no Líbano e apoiado pelo Irã na luta contra o Estado de Israel – e Hamas – organização palestina, também considerada terrorista pela grande maioria dos países ocidentais.
Na Síria, ao contrário do caso da Líbia, há uma grande dificuldade de utilização da OTAN. Isso porque Kadafi era uma liderança desarticulada da comunidade árabe. Sua importância foi considerável durante a década de 1970 e 1980, quando utilizou as riquezas de seu país para patrocinar ações da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e mesmo a criação do Hezbollah. Contudo, sua perseguição aos grupos fundamentalista na Líbia fez com que perdesse parte desse apoio. Assim, Kadafi isolou-se, enquanto as articulações de Assad e a importância da Síria no mundo árabe cresceram. A deposição de Kadafi, apesar de trazer suspeitas por parte de outros regimes ditatoriais da região de que o mesmo possa acontecer em seus países, não levou a objeções incisivas.
Assim, mesmo diante da forte repressão que os opositores ao governo de Assad vêm sofrendo, dificilmente a OTAN conseguirá intervir no país. E os embargos impostos ao país acabam não alcançando o resultado esperado porque há o suporte de Rússia, China e Irã, que suprem algumas necessidades da Síria.
Assad, de certa forma, ainda consegue manter uma base de apoio em seu país e no exterior, pois a perspectiva de derrubada do ditador também sinalizaria para uma intervenção estrangeira – direta ou indiretamente – no país, o que acaba não sendo interessante para a população síria. Desse modo, para entender porque Assad ainda permanecerá no poder para fazer a transição é preciso levar em conta o fato de o governante sírio estar conseguindo preservar o apoio de parte das Forças Armadas – elemento significativo para analisar a razão pela qual Ben Ali e Mubarak foram depostos – e também devido à fórmula de intervenção utilizada na Líbia e que em nada atenderia os interesses dos sírios. Agrega-se a isso o risco de ali ser empregado o mesmo modelo de intervenção adotado contra o Iraque. Por outro lado, porém, Assad ainda não conseguiu criar as condições necessárias para fazer a transição que possa preservar seu status quo e acalmar a oposição. Com isso, cria-se um grande imbróglio.
“Primavera Árabe” e “Revolução Islâmica Iraniana”
A partir da breve exposição proposta nessa análise, é possível perceber que o movimento revolucionário – surgido basicamente entre jovens árabes – conseguiu derrubar alguns ditadores e colocar outros em xeque. Ainda, outros países do Oriente Médio que vivenciam esse movimento tiveram a flexibilização de seus regimes ou iniciaram o processo de transição política, como no caso do Iêmen. No entanto, no que tange às questões formuladas durante o transcorrer dessa análise, caberia a utilização da Revolução Islâmica no Irã como parâmetro para entender as possibilidades de sucesso dos países que vivem o momento de transição, principalmente Egito, Líbia e Tunísia.
O que os países que constituíram esses movimentos revolucionários têm em comum? 1) Tanto o Irã quanto os países da Primavera Árabe sofreram com a atuação das potências ocidentais durante o século XX – seja devido ao modelo colonialista ou à intervenção direta e/ou indireta em sua soberania política e econômica; 2) todos os países viviam sob ditaduras até que ocorresse a ruptura; 3) os ditadores, se não recebiam apoio das potências ocidentais diretamente, contavam com seu beneplácito; 4) a situação econômica nesses países gerou concentração de riquezas nas mãos de um pequeno grupo ligado ao poder e empobrecimento da maior parcela da população; 5) a repressão política era muito violenta. Poderíamos citar ainda outras similaridades, se fosse o caso.
O que poderíamos perceber como principal fator incomum? A Revolução islâmica iraniana tinha o elemento religioso como balizador para a construção de um novo modelo de governo e sociedade. Nele, os princípios islâmicos significavam a redenção do povo e a ruptura com um modelo ocidental falido e que não atendia ao interesse da população. Por outro lado, a Primavera Árabe nasce com uma proposta “clara” de derrubar uma ditadura em prol do estabelecimento de um regime democrático — entretanto, não há a ruptura com a estrutura de poder previamente estabelecida.
Os revolucionários iranianos desmontaram a estrutura do estado anterior e a construíram sob um novo modelo de governo. Mas nesse caso o elemento religioso já exigia essa mudança, fato esse que não ocorreu nos países que vivenciaram a Primavera Árabe. Egito e Tunísia ainda lutam para implementar um modelo democrático — contudo, as antigas elites que usufruíram das benesses do poder têm dificuldade para permitir isso e tentam corromper o processo, no intuito de assegurarem suas vantagens.
Ainda, sem haver uma figura consensual para comandar o processo pós-Revolução, como foi o caso do aiatolá Khomeini no Irã, e, tendo sido desconstituídas todas as instituições democráticas durante os longos períodos ditatoriais nos países árabes, a possibilidade de que haja um consenso entre os grupos que estão sendo formados reduz-se consideravelmente.
A essa dificuldade, agrega-se o fato de que durante a Revolução Iraniana o elemento religioso não representava um perigo real para o Ocidente, vindo a configurar-se como tal apenas posteriormente. Por isso, não sofreu qualquer represália. Inclusive foi tratado como inovador por intelectuais, como Foucault. Ao passo que, atualmente, todos os partidos que apresentem inclinações “fundamentalistas” são vistos como perigosos para a “construção da democracia” no país. Ou seja, a democracia já nasce limitando a participação democrática a partir de interesses externos.
A partir dessas considerações, é possível aventar a possibilidade de que os países que vivenciaram a Primavera Árabe, se não conseguirem romper com as antigas estruturas de poder e se afastarem da égide dos Estados Unidos e países europeus, correm o risco de entrarem no modelo cíclico de dominação que perdurou até o início dos movimentos em dezembro de 2010. Ou seja, com um verniz democrático, esses países poderão eleger governantes comprometidos com a política externa dos aliados ocidentais e não com seus nacionais. A partir daí a tendência natural será aproximarem-se do que foram os governos de Mubarak ou Ben Ali, algo que tem sido muito frequente na história desses países.
Desse modo, a Primavera Árabe que nasceu do clamor dos jovens – que em alguns aspectos lembra os manifestantes de 1968 – por mudanças políticas, econômicas e sociais, corre o risco de se transformar em uma nova Primavera de Praga. Quem sabe, impondo a dominação a partir de outras estruturas democraticamente mais “aceitáveis” que os tanques soviéticos que invadiram a antiga capital da Tchecoslováquia.

RELATÓRIO SOBRE O PROJETO NUCLEAR DO IRÃ NÃO TRAZ INFORMAÇÕES NOVAS

Terça-feira, 15 de novembro de 2011


O jornalista Roberto Nonato entrevista o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) sobre o relatório que analisa a situação do projeto nuclear iraniano.

NA LÍBIA, SEM KADAFI, TRANSIÇÃO ANDA POR TERRENO POUCO FIRME

Mundo, 25 de outubro de 2011

Igor Natusch
A morte de Muammar Kadafi foi recebida por boa parte da opinião pública de forma positiva, como o fim de um regime que manteve a Líbia sob mais de 40 anos de ditadura. Para o povo líbio, no entanto, o fim do ex-ditador está muito mais para o começo de uma longa caminhada. Que deve ocorrer em terreno pouco firme, sem instituições políticas consolidadas, conduzida por um governo de transição que demonstra pouca coesão e sobre a pressão constante de interesses internacionais.

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“A legitimidade do atual governo de transição é, basicamente, imposta pelo Ocidente”, diz Renatho Costa, professor de Relações Internacionais da Unipampa, em entrevista ao Sul21. Segundo ele, a influência ocidental sobre o governo provisório da Líbia traz em si o mesmo risco de outros governos que também recebiam esse aval, como os de Ben Ali, Hosni Mubarak e o próprio Kadafi. “O governo dele (Kadafi) não mudou, foi sempre o mesmo durante 40 anos, com os mesmos métodos. A conjuntura que agora resultou na queda dele é algo que, no fundo, sempre existiu. A Itália, por exemplo, sempre teve boas relações com a Líbia, era a maior compradora de petróleo do país. Por que mudou? Por questões conjunturais”, questiona Renatho.
“A Líbia tem poucas chances de sobreviver como um Estado unificado”, resume o professor Ruslan Pukhov, do Centro de Análise de Estratégias e Tecnologia de Moscou (Rússia). Na opinião dele, o Conselho Nacional de Transição (CNT) não será capaz de manter o controle da Líbia por muito tempo e a tendência é de que haja uma intensa luta pelo poder. “A única coisa que mantinha essa estranha aliança unida era a figura de um inimigo comum, Muammar Kadafi. Apesar de sua extravagância e comportamento, ele tinha conseguido construir uma aliança de tribos a seu redor. E essa aliança agora está desintegrada.”
“Os desafios são enormes”, dizDavid Hartwell, da equipe de analise de Defesa e Segurança do instituto IHS. “Toda atividade política foi suprimida por Kadafi. Não existe na Líbia uma cultura de debate político ou de se buscar um consenso para decisões”. Mesmo assim, ele se diz “moderadamente otimista” com a capacidade de o governo transitório manter a coesão no país. “Até aqui, o CNT não entrou em colapso, e as lutas internas têm sido surpreendentemente poucas. Mas os verdadeiros problemas virão em breve, já que diferentes grupos estavam unidos em derrubar Kadafi, mas nada indica que continuarão unidos daqui alguns meses.”
Richard Falk, professor emérito da Universidade de Princeton (EUA) e relator especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre os Territórios Palestinos, acredita que há um “vácuo de liderança” na Líbia e que ele não deve ser preenchido adequadamente em um futuro próximo. “É difícil discernir se as lealdades tribais poderão servir de base para o surgimento de identidades políticas primárias. E boa parte dos atos finais da batalha estiveram sobre o controle semiautônomo, à moda de milícias, de comandantes como Abdel Hakim Belhadj e Fawzi Bukatef. Esse tipo de comandante não costuma se submeter ao controle civil, o que já é uma ameaça imediata à coesão nacional.”
Morte de Kadafi foi retrocesso, diz professor da Unipampa
A morte de Muammar Kadafi foi dramática e brutal. Vídeos registrados por soldados envolvidos na captura mostram um ex-ditador alquebrado e ferido, sendo agredido e humilhado pelos rebeldes que o fizeram prisioneiro. Após sua morte, outras imagens mostram revoltosos exibindo o corpo de Kadafi como um troféu. A morte sem julgamento, além de causar embaraço ao CNT – o que levou o comandante das tropas rebeldes, Omran el Oweib, a assumir publicamente a responsabilidade pelo fato – pode ter efeitos ainda mais acentuados do ponto de vista simbólico.
“Acredito que muitos líbios teriam preferido que a justiça fosse feita em um tribunal”, diz Jeremy Keenan, professor de Antropologia Social na Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres. Segundo ele, é impossível afirmar se a morte do ex-ditador trará de fato o fim de suas relações de poder ou se poderá, de certo modo, fortalecer a imagem de Kadafi, transformando-o em um mártir.
“O julgamento seria muito mais enfático em apontar uma mudança, simbolizaria um rompimento efetivo com o antigo regime”, argumenta Renatho Costa, da Unipampa. “Mas o que aconteceu foi justamente o contrário: a questão acabou sendo resolvida como sempre se resolveram as coisas na Líbia. Prevaleceu a força, aplicada de forma sumária por quem detém o poder. Acabou sendo um sinal de retrocesso”, opina.
Outros analistas parecem ter uma visão diferente do modo como Kadafi encontrou seu fim.Ahmed Addarrat, exilado líbio nos EUA e um dos líderes da organização internacional de refugiados políticos Enough, acha que um julgamento poderia atrasar a remodelagem política e social da Líbia. “Um julgamento seria um circo, uma distração”, argumenta. “É algo que impediria o começo da reconstrução. Há um país a reconstruir e muito trabalho a fazer e acho que é melhor que ele esteja morto e fora do caminho desde já”, diz Addarrat.
Alan Fraser, analista de Oriente Médio da empresa de consultoria de riscos AKE, concorda parcialmente com o ativista líbio. “É um acontecimento que ajuda o CNT a seguir em frente. Significa, na prática, que será evitado um longo julgamento que poderia provocar divisões e mesmo revelar alguns segredos indesejáveis.”
Daniel Korski, membro do Conselho Europeu para Relações Exteriores e apoiador de primeira hora da intervenção da OTAN na Líbia, considera a morte de Kadafi um evento que provoca efeitos mistos sob o governo de transição. “Evita-se um arrastado drama judicial à Slobodan Milosevic, mas também elimina a chance do novo governo líbio mostrar a si mesmos melhores do que ele (Kadafi) era”. Além disso, argumenta, a morte brutal de Muammar Kadafi amplia o risco de que o ex-ditador vire um mártir, “algo que seus feitos em vida jamais teriam feito por merecer”, segundo o analista.
Governo de transição diz que usará sharia como base da legislação
Sinais vindos do Conselho Nacional de Transição indicam que o atual governo pode adotar um caminho sempre temido para garantir a unidade nacional: a religião. “Nós, como nação muçulmana, teremos a Sharia islâmica como fonte de nossa legislação”, afirmou no último domingo (23) o presidente do CNT, Mustafa Abdel Jalil. “Daqui para a frente, toda lei que entrar em conflito com os princípios do Islã será declarada legalmente nula”, acrescentou. Ainda que tenha garantido que a sharia não implica em um “Estado fundamentalista” e que a Líbia respeitará as convenções internacionais, a fala de Jalil provocou reações de diferentes setores. A União Europeia, por exemplo, conclamou o governo interino a “respeitar os direitos humanos e os princípios democráticos” no processo de construção de uma nova Líbia.
Renatho Costa, da Unipampa, admite que a possibilidade de um regime fundamentalista na Líbia não pode ser descartada. “Há uma visão idealizada da religião, reforçada até mesmo pelo modo como o ocidente tenta atuar na região”, argumenta. “Como até agora o governo tinha sido ocidentalizado e não funcionou, a adoção da sharia acaba surgindo como uma alternativa. A questão é até que ponto o ocidente aceitaria um governo com essa característica, algo que a gente sabe que causa muita resistência. O próprio Irã, por exemplo, teve que sofrer um golpe de estado para que essa lei fosse aplicada”.
Mais um dos muitos aspectos, segundo o professor da Unipampa, que pesam sobre a continuidade das ações da OTAN em território líbio. “É um momento extremamente complexo. Se o ocidente atuar de forma muito enfática, o governante escolhido perderá credibilidade. Por outro lado, se a OTAN deixar a Líbia agora, é grande o risco de uma guerra civil”, afirma Renatho Costa, acentuando que não há respostas para questões importantes, como o destino que será dado aos aliados de Muammar Kadafi no período imediatamente posterior a sua queda.
Daniel Kehoane, do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, diz que a guerra pode estar encerrada, mas é preciso ter em mente que a transição está em seu início. “Dizer que (a ação da OTAN) foi um sucesso ou não depende do seu ponto de vista. Se a questão era se livrar de Kadafi e proteger civis, então podemos dizer que sim, foi um sucesso tático em um certo sentido. Mas a grande questão estratégica é: a Líbia vai conseguir consolidar um regime democrático? E isso não está claro”.
“Em termos de exercitar uma verdadeira autoridade, Kadafi provavelmente será substituído não por líbios, mas sim pelos poderes estrangeiros que auxiliaram em sua queda”, diz Patrick Cockburn, jornalista irlandês e correspondente do The Independent no Oriente Médio. “Levando em conta o que aconteceu no Afeganistão e no Iraque, não deve levar muito tempo para que as ações das potências ocidentais sejam visíveis.”