sexta-feira, 15 de abril de 2011

SÍRIA E LÍBIA: DUAS PEDRAS ÁRABES NO SAPATO DO OCIDENTE

Mundo, sexta-feira, 15 de abril de 2011


Igor Natusch


As potências ocidentais, acostumadas a intervir de forma nem sempre suave nos assuntos relativos ao mundo árabe, estão tendo que encarar duas questões bastantes espinhosas no tabuleiro político internacional. Além da intervenção na Líbia, que se arrasta há quase um mês sem apresentar sinais de solução, o Ocidente começa a dar sinais de especial preocupação com a situação de outro país árabe, a Síria. Aliado do Irã, país cuja simples menção provoca calafrios nos EUA, e famoso refúgio para líderes fundamentalistas, o novo personagem nesse cenário de revoltas populares tem potencial para criar sérias dores de cabeça aos países ocidentais, em um delicado xadrez que ainda deve render muitos lances imprevisíveis.

A Síria é governada desde 1971 pela família al-Assad. Nas últimas semanas, as ruas de várias cidades sírias foram tomadas por manifestações pedindo mudanças no regime, que está desde 2000 nas mãos de Bashar al-Assad. No momento, o governo da Síria fez apenas algumas vagas promessas de abertura, ao mesmo tempo que critica o “complô internacional” que estaria tentando derrubar o governo sírio.

O professor Renatho Costa, do curso de Política e Relações Internacionais da Unipampa, lembra que o governo da Síria está nas mãos de uma minoria alauita, quando a população do país é, em sua maioria, do grupo sunita. “Desde antes de Bashar al-Assad, o poder sempre foi mantido pela força, com a preocupação de desestimular qualquer movimento de oposição, mesmo que à custa de massacres”, descreve o professor.

A Síria era aliada da União Soviética durante os tempos de Guerra Fria, o que impedia intervenções mais concretas dos EUA e consolidou as atuais estruturas de poder no país árabe. A partir de 2005, com a pressão sobre a Síria para que desocupasse o Líbano, a posição do país foi enfraquecendo gradualmente. “Não existe tolerância internacional ao regime da Síria”, afirma Renatho Costa. Isso se soma, segundo o professor da Unipampa, à visão de muitos países ocidentais, que consideram a Síria uma “apoiadora do terrorismo”, na medida em que oferece asilo a líderes de grupos como o Hamas e o Hezbollah.

Antônio Jorge Ramalho da Rocha, do Instituto de Relações Internacionais da UnB, vê a questão de forma um pouco diferente. “A Síria é vista pelo Ocidente como tendo um papel estabilizador na geopolítica árabe, ainda que não necessariamente de forma positiva”, argumenta. “É um país que tem liderança na região, que exerce influência na questão da Palestina, na Jordânia, em movimentos como o Hamas, e que acaba influenciando na questão de Israel também. Qualquer mudança no regime sírio terá implicações em todos esses aspectos”, diz ele.

Alberto Pfeifer, professor e analista de Conjuntura Internacional da USP, identifica na Síria um quadro semelhante ao do Egito, com uma mobilização espontânea da população, sem líderes, ainda que com sinais claros de coordenação. “A impressão é de que a pressão não vai diminuir até que a mudança aconteça de fato, indo além de mudanças de alguns nomes do ministério”, diz Pfeifer.

Nesse sentido, segundo Alberto Pfeifer, a posição das forças armadas da Síria será decisiva para ditar os rumos da rebelião. No momento, a repressão aos revoltosos sírios está a cargo da polícia política, sem envolvimento direto dos militares. “No Egito, por exemplo, as forças armadas não atuaram em favor do governo, o que diminui sua margem de resistência”, explica o professor da USP. “O termômetro, no caso da Síria, é Damasco. Se a rebelião tomar conta das ruas da capital, vai ser difícil segurar sem uso da força. E aí será preciso ver que direção o exército vai tomar”.


Relação da Síria com Irã dificulta ação mais
firme do Ocidente


Na leitura de Renatho Costa, o governo sírio está sinalizando com negociações, na medida em que o uso da força não tem conseguido diminuir os protestos e a comunidade internacional deixa cada vez mais clara sua insatisfação com o regime de Bashar al-Assad. “Penso que talvez já seja tarde demais para isso, até porque é um regime que nunca foi visto como legítimo”, ressalva. O especialista acredita que a pressão internacional sobre Assad devem ganhar intensidade, no sentido de uma abertura política e de eleições livres, nas quais o atual governante e seus partidários estejam impedidos de concorrer. “Uma intervenção militar de países ocidentais me parece distante, mas a campanha contra o atual governo certamente deve se tornar bem mais intensa”, acredita Renatho.

Um sinal dessa pressão surgiu durante a semana, quando o governo dos EUA passou a manifestar insatisfação com uma eventual ajuda do Irã ao governo sírio. Segundo os norte-americanos, o governo de Mahmoud Ahmadinejad estaria apoiando, inclusive materialmente, a repressão estatal aos revoltosos que pedem a queda de Bashar al-Assad. “Se a Síria está pedindo ajuda ao Irã, não demonstra ter uma postura séria em relação a verdadeiras reformas”, criticou o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Mark Toner.

“O interesse ocidental na manutenção do regime sírio depende da relação com Israel e Irã”, argumenta Alberto Pfeifer, da USP. Segundo o professor de Relações Internacionais, a ligação de Síria e Irã é notória, ao mesmo tempo que a postura com relação a Israel ajuda a manter “certo equilíbrio” no panorama geopolítico da região. “Síria mantém certa tensão contra Israel, mas não ataca diretamente. É uma postura menos indesejável, para os países ocidentais, do que uma hostilidade declarada aos israelenses”, afirma. Renatho Costa, da Unipampa, acrescenta que a ligação entre Síria e Irã surgiu especialmente devido às relações de ambos os países com a organização fundamentalista Hezbollah.

“A equação EUA x Irã é bastante complicada, e contamina de forma negativa todo o mundo árabe”, diz Antônio Jorge Ramalho da Rocha, da UnB. O professor lembra que a posição do Irã na geopolítica árabe fortaleceu-se nos últimos anos, “muito por políticas equivocadas do próprio governo norte-americano”. Para ele, é justamente essa relação difícil que inviabiliza uma intervenção ocidental mais firme na Síria, na medida em que a proximidade do regime de Bashar al-Assad com o Irã é indiscutível. “A Síria não está isolada no mundo árabe, como a Líbia, por exemplo. Todos (os países ocidentais) demonstram estar temerosos com as implicações de uma ação mais severa no país. Uma proposta de intervenção como a que foi aprovada contra (Muammar) Kadafi não passaria na ONU”, argumenta.


Alberto Pfeifer: “operação contra Kadafi é um fracasso”

Intervenção essa, aliás, que não parece estar conduzindo o conflito na Líbia a uma conclusão mais rápida. Próxima de completar um mês, a ação aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU não diminuiu sensivelmente os confrontos no país, e tampouco parece ter abalado decisivamente a posição de Muammar Kadafi à frente do regime.

A esse respeito, Alberto Pfeifer, da USP, é categórico. “Do ponto de vista militar, a operação é um fracasso”, dispara. “A Otan não consegue afastar do poder um ditador supostamente enfraquecido, que já não tem controle de metade do seu próprio território”. No aspecto político, a situação da coalizão também não é das melhores, segundo Pfeifer. “A ação já nasceu enfraquecida, sem o apoio de países importantes como Alemanha, Rússia e China”, explica o professor. A França teria interesse em ver suas empresas explorando o mercado de petróleo da Líbia, enquanto a Itália, um dos principais compradores da nação árabe, acaba se vendo forçada a adotar postura mais cautelosa. “É um jogo político e econômico bem complexo”, descreve Pfeifer.

Renatho Costa, professor da Unipampa, não usa termos tão enfáticos quanto os de Alberto Pfeifer. Segundo ele, ainda não dá para dizer que a iniciativa contra Kadafi tenha fracassado. “Não vislumbro um recuo, e sim um recrudescimento”, afirma. Para ele, o maior causador de indefinição na ação contra o governo líbio é a dificuldade de vislumbrar um consenso pós-Kadafi que permita um governo de transição. “Mesmo a legitimidade dos rebeldes de Benghazi, do ponto de vista político, é questionável”, afirma. “É um grupo que se formou para enfrentar um ditador, mas não parece que ele tenha consistência para apontar um nome de consenso, para unir a Líbia durante um período de transição”.

“Era uma faca de dois gumes”, comenta o professor da UnB Antônio Jorge Ramalho da Rocha. “Por um lado, era muito difícil para a ONU omitir-se, na medida em que estava clara uma situação de guerra civil e havia risco de uma matança no país. Por outro, Kadhaffi não é o tipo de líder que vá negociar sua permanência no poder, seja em que termos forem”. A ação contra Kadhaffi, em certo sentido, serviria até mesmo para fortalecer sua posição, na medida em que o ditador usa os bombardeios da coalizão como forma de galvanizar seus apoiadores e descaracterizar o esforço internacional como uma iniciativa buscando apenas o controle dos recursos minerais da Líbia.

Para o professor da UnB, a redação da resolução do Conselho de Segurança da ONU é muito aberta, o que também acaba fragilizando a ação internacional. “Os limites para o emprego da força não estão bem estabelecidos”, critica Rocha. É justamente essa ambiguidade que motivou a abstenção de alguns países na votação que autorizou a iniciativa, entre eles o Brasil. “Na linguagem diplomática, abster-se de votar é estar em desacordo com o que está sendo votado”, acentua o mestre em ciência política.


Tendência é de conflito longo na Líbia,
diz professor da UnB


“A margem de negociação diminui a cada dia”, diz Renatho Costa, que prevê uma intensificação da pressão internacional sobre a Líbia. Segundo o professor de Relações Internacionais da Unipampa, só deve haver uma saída negociada no momento em que as forças de Kadafi não tiverem mais capacidade de resistência, o que pode levar bastante tempo. “Kadafi tem uma perspectiva quase messiânica a respeito da própria posição, é muito difícil que ele aceite abandonar o poder”, comenta. “A partir de agora, resta aos países da Otan ou assumir militarmente uma intervenção, inclusive por terra, ou insistir no financiamento e treinamento dos rebeldes líbios. É uma decisão que está sendo tomada com cautela, até pela ameaça de represálias de grupos extremistas árabes. É um momento de estudo”, descreve Renatho Costa.

Para Alberto Pfeifer, as potências ocidentais perderam a chance de trabalhar um movimento de oposição dentro da Líbia. “Hoje em dia, não existe nenhum sinal de que possa surgir um grupo político capaz de assumir o poder. O Ocidente poderia ter dado subsídios para que uma oposição se consolidasse na Líbia, para que um grupo mais coeso surgisse e a partir dele houvesse uma derrubada de Kadafi. Isso não foi feito”, critica. Para ele, a solução do conflito não será nada fácil. “Fazendo as contas, talvez Kadafi chegue à conclusão de que o exílio é uma solução mais conveniente, mas isso não parece nem um pouco provável”, diz o analista.

Antônio Jorge Ramalho da Rocha acredita que a única possibilidade de uma saída negociada está não em Muammar Kadhaffi, e sim nas pessoas que o cercam. “Não apenas a própria família de Kadafi, mas várias outras famílias influentes no regime da Líbia, estão sofrendo sanções e tendo contas bloqueadas no exterior”, exemplifica. “Talvez aí possa surgir uma pressão capaz de fazer Kadafi balançar, mas mesmo esse não é um cenário provável”, admite Rocha.

Para o professor da UnB, a tendência acaba sendo de um conflito longo, com boas chances de sair do espaço aéreo líbio e estender-se por terra. Nesse panorama, a falta de um cenário político consolidado na Líbia fortalece a capacidade de resistência de Kadafi. “Nem mesmo entre os filhos dele há uma definição sobre qual seria o sucessor. Muammar Kadafi sempre trabalhou com essa ambiguidade”, garante Antônio Jorge Ramalho da Rocha. Mesmo na eventualidade de sua deposição, Kadafi pode continuar sendo uma pedra no sapato das mais desconfortáveis. “Na medida em que não seja capturado, ele pode perfeitamente ser acolhido pelas famílias que o apoiam e desaparecer”, especula Rocha. “E Kadafi já deu sinais claros de que não tem escrúpulos para fazer uso do terror”.

Disponível em: http://sul21.com.br/jornal/2011/04/siria-e-libia-duas-pedras-arabes-no-sapato-do-ocidente

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